terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Em 2015: "Bolsonaro e Sheherazade: ninguém merece"


 
“Se não tivesse dado bobeira, não tinha acontecido”. Cada vez que alguém repete esta frase e seus derivados, um grande sinal verde se acende para todo tipo de atrocidade, do assedio verbal à violência física. Durante anos, séculos, machões pais e machões filhos aprenderam que mulher direita deve se precaver. Deve zelar pelos próprios desejos, para não ser chamada de “rodada”, e pelos desejos alheios, para não provocar demônios (masculinos) irrefreáveis. Uma saia, um beijo, uma conversa íntima, uma saída com as amigas para uma cerveja ao fim do dia: basta colocar os pés fora de casa, e profanar o esfregão e o avental destinados a ela, para assumir, por sua conta e risco, um destino manifesto. “Se não tivesse dado bobeira, não tinha acontecido”. Pois, se acontecer, a culpa é dela. Se aconteceu é porque mereceu.
 
Duvido que o leitor, homem ou mulher, tenha passado o último ano, talvez o último mês, sem ter ouvido discursos desse tipo. Pelo raciocínio, homens são seres incapazes de refrear os próprios desejos. Estes não podem ser despertados porque, presume-se, não se controla a força de uma corrente natural. Sendo assim, basta à mulher se comportar e saber onde pisa e o respeito brotará como um dom natural, certo? Errado. Muito errado. Tão errado que dá até vergonha de repetir.
 
Mas a gente repete. E vai repetir todos os dias até que figuras públicas, como Rachel Sheherazade, deixem de deseducar seu público com discursos tão primários quanto enganosos. O último deles aconteceu após o deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ), homofóbico declarado, dizer à colega Maria do Rosário (PT-RS) que só não a estuprava porque ela não merecia.
 
Bolsonaro acabava de afofar o colchão que durante séculos permite aos machões de todos os matizes, de direita ou de esquerda, ricos ou pobres, cristãos ou ateus, estraçalhar quem estivesse à sua frente pelo critério do merecimento. É quando o estupro deixa de ser considerado o que é – um crime hediondo – e se torna um recurso apenas não recomendável. Esta premissa, repetida à exaustão nas melhores casas de família, e agora vomitada na tribuna do Congresso, é um dos muitos sinais verdes para a perpetuação de uma atrocidade. Este grande letreiro culpa a vítima pelo merecimento, ou não, da violência sofrida e exime o homem do próprio crime – este é compreendido como um instinto natural, portanto incontrolável, e não uma ação legitimada por um discurso recorrente.
 
Nada mais natural, portanto, que este discurso seja prontamente refutado por quem luta diariamente por um direito básico: o direito de viver em segurança com o próprio corpo. Por isso é uma pena, sob todos os aspectos, quando as protagonistas desta batalha são criminosamente reduzidas a “feminazis”, numa confusão odienta entre feminismo e nazismo. Pois foi esse o recurso usado por Sheherazade para sair em defesa de Bolsonaro.

 
A defesa, feita na Rádio Jovem Pan, é torta do início ao fim. Primeiro porque insiste em atribuir cores a um mundo acinzentado. A lógica sheherazadiana é mais ou menos assim: Bolsonaro disse que NÃO estupraria Maria do Rosário, pois esta não possui atributos estéticos merecedores da oferenda. Sorte dela, azar de quem as tem. Logo, o deputado não pode ser punido por não querer estuprar alguém. Como se o que estivesse em debate fosse o desejo, e não a incitação ao crime, Sheherazade opta por reduzir a conversa a um exercício de liga-pontos: Deus é amor, o amor é cego, Stevie Wonder é cego, Stevie Wonder é Deus.
 
Em sua defesa do indefensável, Sheherazade joga a arte de argumentar no lixo e faz uso de uma rasa falácia circunstancial. Como recurso retórico de quem cabulou as aulas de Filosofia, cita o deputado como um grande defensor do direito das mulheres, pois é dele um projeto de lei na Câmara que prevê a castração química para estupradores. Segundo ela, os grupos de direitos humanos, contrários à proposta, seriam, por sua vez, responsáveis pelo mal que tentam incumbir a um deputado de bem. De novo: Deus é amor, o amor é cego, Stevie Wonder é cego, Stevie Wonder é Deus.
 
Para quem, em entrevista recente, admitiu só conhecer São Paulo pelo trajeto casa-trabalho-shopping, o conhecimento da realidade não chega a surpreender: neste mundo ideal, os problemas complexos são facilmente solucionados pelo rigor e a boa vontade e todos voltam a dormir felizes. Quem dera. Dias atrás, uma amiga contava, assustada, o caso de duas amigas que saíram de casa para tomar cerveja, conheceram dois sujeitos interessantes e toparam conhecer o apartamento de um deles. Ambas foram dopadas, ambas foram violentadas – sempre sob o argumento de que, se toparam subir até o apartamento, não tinham o direito de refugar. Pela lógica do discurso do machão, elas “mereceram” o que passaram – e esta lógica do merecimento foi o freio principal para não denunciar os algozes, que uma hora dessas estão tranquilos tocando a vida. Eles não eram maníacos no sentido clássico: eram jovens, estudados, e cientes do que faziam. Apenas tinham sinal verde para agir. Esse sinal verde é aceso toda vez que alguém, sobretudo uma autoridade, repete a ideia de que existem mulheres e mulheres; umas merecem ser estupradas; outras, não.
 
O discurso, além de incitar a violência, é burro, pois atribui à saia, à cerveja, à bobeira, ao atributo estético da vítima a autorização do assédio. Não leva em conta os inúmeros casos de mulheres violentadas no ambiente familiar, seja com saia, avental ou burca.
 
Se tivessem ao menos humildade para se esforçar em compreender o mundo para além das janelas do carro-trabalho-shopping, tanto Sheherazade quanto Bolsonaro – e quem quer que repita o discurso – saberiam que o sujeito sobre quem defendem a castração quase nunca é o meliante atrás do poste num beco escuro à espera de um vacilo. O estuprador, em vez disso, está dentro de casa. É o filho, o pai, o tio, o vizinho, o amigo, e todos os que se sentam no colchão de segurança que lhe garante a primazia sobre um corpo que não é seu.
 
A dificuldade cognitiva de quem vê o mundo em preto e branco, sem assimilar suas nuances e subtextos cinzentos, leva à sensação de que um crime hediondo se combata de forma simples. Que, se tudo é uma questão de desejo e perigo, que se corte o mal pela origem. O problema, afinal, nasce e morre no próprio corpo; é instintivo, portanto, e não cultural. De novo: que pena. Enquanto o sinal verde seguir berrando nos alto falantes do atraso, as soluções mágicas para punir o que já aconteceu serão tão eficazes quanto enxugar gelo.
 

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